Rambo | por: Dr. Cármine Porcelli Salvarani
- SBNPED
- 23 de mai.
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Na hierarquia da equipe, Rambo ocupava o posto mais baixo: servente de pedreiro. Era o soldado raso, um comandado valente que estava sempre pronto às ordens de seu superior, o mestre de obras João Pedro, carinhosamente apelidado de Chefe Pedro. Por quase dois anos consecutivos, sob o céu azul de permeio, o servente ficou trabalhando na construção de uma casa em um desses condomínios horizontais de classe média no quente e rico norte do Paraná. Batia o ponto cotidianamente às oito da manhã e saía às dezessete horas, momento em que tragava seu cigarro entre os lábios finos, os quais contrastavam com sua feição rude.
O sobrado em construção era o futuro lar da família da Dra. Cristiane, uma médica cardiologista famosa na região por sua competência e pelo acolhimento dos pacientes que por ela eram tratados. Era daquelas pessoas que gostava de uma boa prosa fora de seus horários laborais. A casa, nada modesta, estava sendo edificada aos poucos, conforme o rendimento da doutora e do seu marido, professor universitário. Destarte, tratou de contratar pessoalmente os cinco pedreiros que ali ganhavam seu sustento. Não havia pressa na execução do projeto, nem vagar. A mulher cuidava de todos os detalhes e parecia esquecer-se do seu estetoscópio e, devidamente calçada com um par de botas e uma calculadora, transformava-se em uma pseudo-engenheira.
O “Soldado” Rambo na linha de frente, o “Sargento” Pedro delegando tarefas e a “general” Cristiane comandando o batalhão naquele canteiro de obras pareciam estar em harmonia. Assim constituía-se uma hierarquia nada convencional na construção daquele que seria o quartel general da médica, do seu marido e do casal de filhos. Ela era cuidadosa e observadora, firme e gentil, predicados que trazia na bagagem de sua vida profissional. Sabia perfeitamente o solo em que estava pisando. Incontinente, percebeu que Rambo era o centro das brincadeiras dos outros pedreiros e passou a acompanhar mais de perto as zombarias.
Rambo tinha a fisionomia dura (e porque não dizer sofrida), uma barba densa que lhe cobria quase todo o rosto, o qual era marcado por uma cicatriz com queloide frontal, de fora a fora, decorrente de um acidente com um espeto de churrasco quando ainda era criança. Seus olhos pretos e sua pele morena bronzeada de Sol, faziam contraste com seus dentes, absolutamente brancos e perfeitos que se podia observar em plenitude nas raras vezes que ameaçava um breve sorriso. Com uma estatura mediana, o servente parecia magro, mas era naturalmente forte, muito por conseguinte do oficio que exercia. Seus braços e tronco, quando expostos ao tirar a camisa, faziam inveja aos outros pedreiros. Com esses predicados, uma mistura de força com cara amarrada era, provavelmente, a origem do apelido.
Em contrapartida, a Dra. Cristiane insistia em chamá-lo pelo nome, sem sucesso. Rambo não era mais o Rodolfo há muito tempo. O Rodolfo, segundo ele, ficou parado na sua adolescência miserável. A afinidade da médica pelo servente crescia, respeitando as devidas proporções, e Rambo, salvaguardadas as devidas vênias, tinha aquela mulher com uma mistura de mãe com qualquer figura platônica. Ela passou a ser como uma confidente para as inseguranças do empregado.
A construção seguia na sua pulsação sem arritmias, ao menos pela visão cardiológica da médica. O engenheiro, personagem invisível, vinha esporadicamente fazer suas visitas para justificar seus ganhos, sob o olhar atento do chefe Pedro e dos olhos atravessados da médica que lhe dava de ombros frequentemente, deixando-o falar para as paredes da casa que subiam. Era a medida da general: gentil com seus subalternos e dura com seus pares. O exemplo mais emblemático dessa situação foi quando a primeira laje, dividindo os pavimentos da casa, foi posta. Pela tradição dos pedreiros, um churrasco deveria ser pago pelo proprietário à equipe de construção. Ela cuidou de todos os detalhes, incluindo a carne, a cerveja e o dia em que tinha certeza que o engenheiro não apareceria.
O churrasco foi um banquete. Os funcionários provavelmente nunca haviam comido aqueles cortes bovinos. Das habituais costelas de ripa, asinhas de galinha e linguiças de terceira, o cardápio apresentou picanha e Kafta de carneiro temperadas com especiarias que a médica preparara com absoluto rigor gastronômico. De quebra, chamou Rambo para comer ao seu lado e lhe ofereceu um copo de cerveja, que o mesmo, prontamente, recusou sob a alegação que sua religião não permitia tais liberalidades. Sem perder a compostura e, com um sorriso amargo, tratou de concordar com a negação do servente e virou, num só gole, o seu copo de cerveja.
Os pedreiros percebiam a afeição da Dra. Cristiane por Rambo. Ela também não escondia que tratava o humilde operário de forma diferenciada. A rigor, em seu íntimo, ela tinha mais pena do que qualquer outro sentimento pernicioso que fosse aventado para com aquele homem.
A casa era erguida numa rotina de entristecer até que Rambo, acidentalmente, prendeu sua mão direita na betoneira e seu dedo mínimo foi quase totalmente cortado, ficando preso por um fiapo de pele. A Dra. Cristiane foi chamada com urgência e ela não demorou mais que 15 minutos para chegar. Com sua costumeira calma, a médica falou pouco, tratou de fazer uma limpeza no dedo com água corrente e, prontamente, fez um curativo com auxílio de um kit de urgência que carregava consigo, no porta malas do carro. Colocou Rambo em seu carro de luxo sem desdém e tratou de levá-lo ao hospital onde trabalhava, coincidentemente próximo à construção.
Ao chegar ao Pronto Socorro, uma amiga ortopedista especialista em mão, já os esperavam. Para o servente de pedreiro, acostumado com filas infindáveis para atendimento, a situação deflagrada parecia-lhe um misto de pesadelo pelo dedo decepado e sonho pela assistência que estava recebendo. A ortopedista, sem pestanejar, indicou a reconstrução do dedo em caráter de emergência. Meio atônito, o servente esboçou indagar que não teria como pagar o tratamento. De pronto, sua patroa retrucou e bateu sua mão contra o peito, determinando quem seria a responsável pelos custos, uma vez que o acidente fora em seus domínios. E lá foi Rambo para o centro cirúrgico. Isso ficou marcado para sempre na vida daquele humilde cidadão.
Após quase 3 meses de afastamento e a obra quase findada, Rambo retornou às jornadas de trabalho com o dedo são e salvo. Exibia-o com orgulho aos colegas e não parava de agradecer às duas médicas que o salvaram de uma eventual aposentadoria precoce. Mesmo desconfiado da atenção especial que lhe conferia a médica e o sucesso do tratamento, Rambo passou a tratar sua empregadora como uma admiração quase que santa, uma referência milagrosa. Uma espécie de canonização que alguns pacientes, como forma de agradecimento, fazem com seus médicos após se sentirem acolhidos e superarem uma grande dificuldade.
A Dra. Cristiane seguia seu ritmo, mas não conseguia esconder a alegria de ver sua futura residência quase pronta e o dedo daquele homem recuperado. Mantinha sua proximidade habitual de Rambo. Seu marido, por vezes a acompanhando no final da construção, esboçava alguns gestos e resmungava palavras subliminares de ciúme frente ao rapaz. Transparecia, em alguns momentos, subjugar Rambo e os demais operários ao celebrar de forma efusiva o final da casa e, consequentemente, o fim daqueles estranhos no lugar.
E assim se deu, sem muita festa e sem muita emoção, a conclusão da casa. A própria Dra. Cristiane se rendera ao cansaço e as diversas demandas com fornecedores e afins na conclusão daquele que seria o lar feliz de sua família. No dia da despedida do local, a doutora quis cumprimentar, um a um, seus funcionários e dar um abraço em Rambo, cuja autoestima se transformara naqueles dois anos de trabalho, mas ele recusou. Disse que não poderia abraçá-la, coisas dele e que era melhor assim. A médica, um tanto surpresa, outro tanto desapontada, se despediu do seu protegido com um aperto de mão sem graça.
Após três meses, já desfrutando de sua luxuosa casa, a Dra. Cristiane foi contatada por sua colega ortopedista, a qual ainda acompanhava Rambo por conta da cirurgia no dedo, dizendo que Rambo ia se casar e lhe queria falar. Subitamente, o coração da cardiologista acelerou. De certo, pela felicidade em saber do casamento e, talvez, por alguma necessidade em que poderia ajudar. Confessou para a colega médica que ficou ansiosa pela situação inusitada e pediu para que, discretamente, falasse com seu paciente para procurá-la na própria residência que Rambo ajudou a construir.
Recebido o recado, Rambo não demorou. Passados dois dias, ele estava se identificando na portaria do condomínio para visitar a então patroa. Devidamente autorizado para adentrar o local, viu a mulher o esperando na porta principal da casa para recebê-lo. Cumprimentaram-se de forma distanciada e a médica, polidamente, o convidou para entrar, mas ele recusou. Ela insistiu, mas ele foi inflexível. Após um momento de silêncio, Rambo lhe tomou pelo olhar e declarou:
- Doutora, sou grato a senhora pelo resto da minha vida. A senhora me mostrou que eu poderia ser alguém. Dei chance para mim e encontrei uma mulher que amo e que me ama.
A médica, pouco afeita às lágrimas, estava com os olhos marejados. Ele acrescentou, pegando um envelope do bolso da camisa amassada e com respingos de cimento:
- Esse é o convite do meu casamento. Espero sua presença e de toda família. Vai ter uma cerimônia religiosa e uma pequena festa após, sem bebida de álcool. E acrescentou: - E essa é a foto da minha mulher. Eu a amo doutora. Voltei a ser feliz, voltei a ser o Rodolfo.
Desta vez, a médica se aproximou de Rambo e a despedida contou com um forte e longo abraço, daqueles de apertar o coração. Ela desejou-lhe a felicidade que merecia e se prontificou em mandar um belo presente para o casal. Ao abraçá-lo, já sabia que não iria ao casamento. Seu coração estava atormentado, seus olhos fitavam a sombra do corpo de Rambo indo embora, sob o pôr do Sol daquele fim de tarde. As lágrimas secaram, mas sua alma chorava copiosamente. E assim ficou por muito tempo.
A Dra. Cristiane nunca mais encontrou Rambo...