“ A pandemia do COVID-19 explicita, é a pequenez dos estúpidos e o quanto eles são maléficos quando têm poder”- D.B de Sant’Anna

O filósofo italiano, Giorgio Agamben, define como homo sacer o ser humano desprezado e passível de extermínio pelo Estado. Este homo sacer está inserido numa necropolítica. Segundo o filósofo camaronês, Achille Mbembe, a necropolítica pode ser definida como uma política do fazer morrer. Existe assim uma demarcação de grupos e pessoas que podem ser excluídas da sociedade, e consequentemente exterminadas pelo Estado. Ou seja, a sociedade ou o Estado escolhem o homo sacer, e definem as políticas para o seu extermínio.
O medo dos microrganismos e a luta para combatê-los fazem parte da historia da humanidade. O Coronavírus pode matar qualquer pessoa, e de certa maneira, se tornou uma forma democrática de morte. Democrática? Estamos realmente todos no mesmo barco? Será que nós estamos no mesmo barco daqueles que moram em comunidades onde várias pessoas vivem numa pequeníssima casa ou barraco, sem saneamento básico, e sem água para lavar as mãos? Será mesmo que neste barco, navegam de forma ética: brancos, negros, povos indígenas e quilombolas? Essa desigualdade e vulnerabilidade social, consequência de uma necropolítica histórica do nosso país, desde a colonização europeia, não estaria, mais uma vez, colocando em maior risco os grupos historicamente mais explorados? Será que realmente não existe uma escala de distribuição do risco em contrair o vírus?
Considerando as nossas atitudes individuais, em que ponto estaremos corroborando com esta necropolítica, ao não liberarmos ou não mantermos os honorários das pessoas que trabalham em nossas casas, que cuidam de nossos filhos, fazendo com que se aglomerem em transportes públicos lotados, e outros que não possuem empregos formais (que são cada vez mais raros) com esse necroliberalismo (7)? Estamos então definindo, em nosso círculo de convivência, o homo sacer da vez?
Além disso, na realidade, o vírus não mata todas as pessoas da mesma forma ou proporção. Este vírus é mais letal para os mais idosos, e para aqueles que possuem determinadas doenças associadas. Então iremos salvar os jovens e deixar nossos idosos morrerem? Esquecer que nesses idosos estão incluídos alguns de nós, nossos pais, avós, amigos (as), colegas e outras pessoas que amamos ou são amadas por outras? E a população que vive nas favelas e comunidades, majoritariamente negra, será mais uma vez a principal atingida? Existe então uma distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer, como destaca A. Mbembe.
Faltam leitos de UTI e ventiladores mecânicos: o jovem será escolhido porque o idoso já viveu muito? O que será considerado como viver muito? Ou o jovem será escolhido porque o idoso não produz mais do ponto de vista financeiro? Quem será o homo sacer desta vez, nessa roleta russa? Quem vale mais? Que vida é a mais importante? Como destaca o filósofo português, José Gil, trata-se não apenas do medo da morte, mas sim da angústia da morte absurda, imprevista, brutal e injusta, que “arrebenta com o sentido e quebra o nexo do mundo”. Antes de combatermos o vírus, é importante combatermos o medo da morte.
Considerando que o Coronavírus é altamente transmissível, e com taxas de letalidade que variam de acordo com a idade da vítima, ou se esta possui outras doenças associadas, ou até se terá condições de ser atendido com meios necessários para permanecer vivo, sair de casa então não ecoaria como um grande risco? Estaríamos então sendo orientados (as) a fazer parte de um experimento, nomeado pelo filósofo brasileiro Vladimir Safatle, de Estado Suicidário, quando somos estimulados a sair de casa? E para aqueles em extrema vulnerabilidade social, em situação de rua, para onde irão? Que casa os abrigará ? Como destaca a filósofa brasileira, Maria C.F. Ferraz, vivemos nessa pandemia “um presente aterrador para o mundo, mas especialmente trágico em um país como o nosso, em que práticas violentas desiguais são há séculos naturalizadas”.
Ficar em casa ou sair? Podemos decidir. Nos tornamos vítimas e ao mesmo tempo perpetradores. Podemos ser contaminados pelo vírus, evoluir com poucos sintomas ou até assintomáticos, ou podemos ter sintomas graves e morrer (seremos as vítimas); ou ainda, podemos transmitir para outras pessoas que estão próximas, e perpetuarmos esta cadeia (seremos os perpetradores). Podemos decidir. Neste momento, nosso corpo toma outro significado: “virou uma arma”, como destaca A. Mbembe.
Para os que sobreviverem, teremos que nos reinventar. Precisamos compreender que historicamente o ser humano vem destruindo tudo de uma forma veloz e absurda, e esse vírus nos obrigou a PARAR. Ficar em casa ou sair? “O imprevisto transforma aquilo que a vontade não soube transformar. Mas agora trata-se de reativar a energia renovável da imaginação”- Franco Berardi.
Para Nietzsche, existe uma sabedoria de vida em aprender com as perdas, com as enfermidades e convalescenças; ressignificar antigos valores, coisas e situações, e reaprender a viver. Tornar-se capaz de “receitar para si mesmo, a saúde em pequenas doses e muito lentamente.”
Não me parece uma “gripezinha” ou um “resfriadinho”. E para você?

José Roberto Tude Melo
Neurocirurgião Pediátrico
Mestre e Doutor em Medicina pela Universidade Federal da Bahia

Referências

1. Agamben G. O Uso dos Corpos. São Paulo: 1.ed Editora BoiTempo, 2017.
2. Berardi FB. Crônica da Psicodeflação (002). São Paulo: editora N-1, 2020.
3. De Sant’Anna DB. Lavar as mãos, descolonizar o futuro (006). São Paulo: editora N-1, 2020.
4. Ferraz MCF. Breve diário pandêmico (10). São Paulo: editora N-1, 2020.
5. Gil J. O Medo (001). São Paulo: editora N-1, 2020.
6. Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, politica de morte. São Paulo: editora N-1, 2018.

7. Mbembe A. Pandemia democratizou poder de matar. Acesso em 31/03/2020.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml

8.Nietzsche F. Humano, demasiado humano. São Paulo: editora Companhia das Letras, 2019.

9.Safatle V. Bem vindo ao Estado Suicidário (004). São Paulo: editora N-1, 2020.