Por: Antonio Bellas

Sou neurocirurgião há muito tempo (comecei a minha residência há 30 anos...), fiz 2 anos de fellow em pediátrica e prático apenas neurocirurgia pediátrica desde então. O que o caracteriza como profissional é exatamente o que você faz (padeiros fazem pão, pedreiros fazem casas e daí por diante).

Tirando um terço do seu tempo para dormir, sobram 16 horas por dia (por vezes incluindo até o fim de semana), em que 8, 12, 14(!!!) são dedicadas à neurocirurgia. Ela consome mais tempo que qualquer atividade que você faça ou tenha feito (inclusive juntando as horas acumuladas do seu jardim de infância e colégio).
A neurocirurgia é sobre sustento (e com sustento não se brinca!!!), satisfação pessoal (poucas vezes) e muito trabalho repetitivo e maçante (conte as horas operadas em comparação com o tempo de diagnóstico, colocar em sala, convencer anestesistas, passar visitas, conversas com pais e principalmente AVÓS).
Neurocirurgia é uma coisa muito séria, que nos dá a respeitabilidade e recursos para competir e vencer neste mundo, por vezes louco e hostil, que conhecemos. Ela nos faz ser membros destacados inclusive no meio médico (“Cara, operar cabeça, não dá nem para comparar”, já ouvimos muito...). Entretanto, por isso mesmo, deixamos de lado nossa simplicidade, nossa vontade de brincar, nossa desimportância, nossa efemeridade, porque acreditávamos no que nos disseram “É preciso ser sério, grande e imortal”, e isto sempre foi muito pesado em nossas vidas.
A capacidade de rir de si mesmo, entender que sempre haverá alguém que pode fazer melhor, mais rápido, mais persistente, nos leva a uma existência onde a relevância do que fazemos fica bem definida: é só neurocirurgia (mas também “Meu Deus, isso é uma neurocirurgia, é incrível!”).
Fazer bem feito, com qualidade, ajudando pacientes é exatamente o que nos propusemos. Mas é só. Continuamos pais, vizinhos, filhos, patrões, companheiros, maridos e mulheres...
Então, o que nos define? O que somos? O que fazemos por mais tempo, ou o que fazemos melhor? O que nos torna importantes, ou com mais dinheiro? Talvez seja tudo isso, junto (um velho ditado judaico diz “Melhor ser rico e saudável, do que pobre e doente...”)
Menos pressa, mais reflexão, menos importância, mais encontro, mais amigos que são muito importantes para você, mais pressa de retornar para casa, menos reflexão de como ganhar mais dinheiro, mais esforço para gastar menos tempo, são efetivamente coisas que nos definem.
Daqui a 50 anos, por mais trabalhos que tenhamos escrito (todos estarão desatualizadíssimos e ilegíveis) e por mais dinheiro que tenhamos ganho, ninguém do nosso meio profissional vai lembrar da gente (aos mais novos, um desafio, e não vale google: quem foi Dr. Portugal, do Rio de Janeiro, nos anos 60-70? Uns dois ou três mais velhos sabem quem é, o resto vai achar que o nome deve ser o início de uma piada que eu vou contar...). Mas os nossos filhos, netos e amigos sabem exatamente quem fomos, a depender do nosso investimento de tempo e carinho.
Uma carreira bem-sucedida é aquela em que investimos muito tempo e com retorno a longo prazo. Filhos e amigos são investimentos com chance enorme de dividendos por 30, 50, 100 anos. Neurocirurgia é apenas o que você faz (e todos fazemos muito bem feito, afinal estamos reunidos em sociedade, porque somos parecidos...), mas não é o que somos. Existe muito mais do que isso. Tenha certeza de estar empenhando seu bem mais precioso, seu tempo, em algo realmente importante, sua vida.
O que o meu barco a vela me ensinou sobre neurocirurgia? Nada. E é exatamente para isso que ele serve. É uma das coisas mais importantes, das coisas menos importantes. O que faço quando velejo? Nada, apenas velejo, respiro e vivo. Rapaz, garanto, é muita coisa...